Como todas as ciências,
a História tem suas especificidades, trabalha com formas de raciocínio próprias
a ela, tem seus limites e também suas exigências.
Uma grande dificuldade
que nós encontramos quando queremos falar de nossos estudos é estabelecer a
diferença entre o que é trabalho historiográfico sobre um determinado tema e o
que é simples juízo de valores. Por exemplo, quando falamos sobre o preconceito
racial, todos nós temos uma opinião a respeito. Alguns são contra, outros a
favor, uns dizem que a culpa é dos próprios discriminados, outros afirmam que o
preconceito é pura injustiça.
Trata-se de opiniões
sobre o assunto. Outra coisa bem diferente é analisar historicamente o racismo,
pesquisar suas origens, a quem ele serviu ou ainda serve, quais interesses
estão por trás de uma teoria racista e em que contexto ela foi elaborada.
Vamos pensar no Brasil
Colonial. A que conjunto de acontecimentos pertencia a ideia corrente de que os
negros não tinham alma? Certamente a questão da escravidão. A quem interessa a
difusão dessa ideia? Não aos escravos, com certeza!
Eis a diferença! Não se
trata apenas de opinar ou julgar quem está certo ou errado. Trata-se de
localizar e compreender historicamente o acontecimento, de tentar entender por
que os homens daquela época agiam daquela forma e, finalmente contribuir para a
formação de valores e de uma visão de mundo mais justa.
1. O CONHECIMENTO HISTÓRICO E DINÂMICO
Essa
abordagem da História não significa que temos a capacidade de recuperar a
verdade do passado. O conhecimento histórico é uma reconstrução dos fatos
passados a partir de fontes históricas, ou seja, é o nosso pensamento de hoje
tentando alcançar o modo de pensar e de viver de outros tempos e de outros
povos.
O
conhecimento histórico é dinâmico: modifica-se, reestrutura-se a partir de
novas descobertas, do aparecimento de novos documentos e até mesmo de novas
formas de ler documentos já conhecidos.
Vamos
fazer um exercício. Leia o texto a seguir:
“Já
indicamos que, na medida do possível, a cidade deve estar em comunicação, ao
mesmo tempo, com o interior do país, o mar e a totalidade do seu território. A
cidade deve oferecer a seus cidadãos uma saída fácil; antes de tudo, ela deve
ter águas e fontes naturais em abundância. Eis por que nos Estados sabiamente
governados, se todas as fontes não são igualmente puras e se há carência de
fontes de boa qualidade, as águas que servem para alimentação devem ser
separadas das que são destinadas para outras coisas.”
Ao
que parece, trata-se do texto de alguém preocupado com a poluição da água,
processo que se intensificou após a Revolução Industrial. A contaminação das
águas urbanas ainda é um grande problema da atualidade. Será essa a preocupação
do autor?
Conhecendo
quem escreveu e em que contexto, percebemos que não. Esse texto foi escrito
pelo filósofo grego Aristóteles, que vivei entre 384 e 322 a.C, e seu título é
Política. Agora leia novamente o texto, pensando que ele foi escrito por um
filósofo da Antiguidade, e perceba como o sentido da leitura se modifica. Não
se trata de um discurso de cunho ecológico e sim um discurso com preocupações
políticas: Aristóteles estava mostrando aos governantes gregos formas de bem
governar.
2.
OS
FATOS E O CONTEXTO HISTÓRICO
Além
de nos fazer perceber que podemos ler um mesmo texto de várias formas, esse
exercício também chama a atenção para o fato de que não devemos pensar em um
acontecimento desligado de seu contexto histórico, porque certamente faremos
dele um juízo equivocado.
Vamos
pensar na História do Brasil. No dia 7 de setembro de 1822, Pedro, príncipe
regente português, decretou a independência do Brasil, que então pertencia a
Portugal, Pedro era o filho mais velho do rei português João VI e, pela regra
de sucessão, herdaria tudo o que pertencia a seu pai quando este morresse,
inclusive o Brasil.
Com
a proclamação da independência, nossa terra não pertencia mais a Portugal.
Logo, o príncipe havia tornado livre uma terra (bem grande, por sinal...) que,
de qualquer forma lhe pertenceria, por direito de herança.
O
processo de independência era irreversível. A qualquer momento, um grupo
revolucionário conseguiria levar adiante seu projeto de tornar o Brasil
independente. Tomando o processo em suas próprias mãos, Pedro tornou-se
imperador do Brasil, função que não o impediria de se tornar também rei de
Portugal quando seu pai morresse.
Parece
que a independência, apoiada pela elite rural, foi um grande golpe para manter
o laço entre os dois reinos.
Entretanto,
o projeto não se concretizou porque Pedro I enfrentou problemas políticos tanto
no Brasil como em Portugal, e sua morte prematura, em 1834, acabou de vez com a
tentativa de união de duas coroas.
Visto
fora de seu contexto, o ato de Pedro I seria entendido de forma completamente
equivocada. O mesmo costuma ocorrer com vários outros acontecimentos que
estudamos na aula de História.
3.
O
RECORTE
Falamos anteriormente que não é possível recuperar
toda a verdade da História, mas apenas montamos hipóteses a partir das
informações que as fontes históricas oferecem. Da mesma forma, não podemos
resgatar todas as experiências humanas vividas. Primeiro, porque muitas não
foram registradas; segundo, porque a quantidade de assuntos a serem estudados
seria muito grande.
Os historiadores especializam-se no estudo de um ou
outro tema, mas ninguém é capaz de estudar tudo o que aconteceu. O que fazemos
então é “recortar” alguns temas para, através da pesquisa, elaborar o
conhecimento histórico.
Vejamos um exemplo de recorte.
O estudo da Revolução Francesa gerou a produção de
centenas de livros sobre o assunto. Um professor, ao escrever um livro de
História para o ensino médio, dedicará um ou dois capítulos do livro para
tratar desse assunto.
Trata-se, portanto, de escrever oito ou dez páginas
a respeito de um acontecimento sobre o qual já se produziram milhares de
páginas.
Como se resolve essa questão? Recortando o tema,
escolhendo entre tudo o que se conhece sobre aquilo que o professor considera
mais relevante para a formação escolar de um aluno do ensino médio.
A própria maneira como o conhecimento histórico
normalmente está estruturado já é um recorte. Por que não conhecemos o Oriente
como conhecemos o Ocidente? Por que os países do Oriente entram no estudo da
História apenas quando existe uma relação entre eles e o Ocidente? Tomamos o
Vietnã como exemplo. Conheceríamos o Vietnã se esse país não houvesse estado
envolvido em guerra com os Estados Unidos.
A História que estudamos foi, quase na totalidade,
escrita sob a perspectiva dos europeus ou de outros povos do Ocidente, como os
norte-americanos. Um dos mais tristes exemplos é a África. O que conhecemos
sobre a história desse continente foi construído a partir do que os países que
praticavam o imperialismo, no século XX, pensavam a seu respeito, e não a
partir do que os africanos entendiam ou entendem sobre sua vida.
“Imperialismo ou Neocolonialismo foi a prática
colonial da segunda metade do século XIX e do começo do século XX”.
4. FONTES HISTÓRICAS
Considera-se fonte
histórica os mais variados documentos escritos, tanto oficiais como obras
literárias e material jornalístico. Também são fontes históricas as expressões
artísticas, desde as pinturas rupestres da Pré-História, passando pela música e
escultura até as artes mais modernas como o cinema, os cartoons e a fotografia.
Tudo o que nos permite
perceber alguma coisa a respeito das pessoas que produziram o material torna-se
um documento histórico. Até a memória das pessoas é documento histórico!
Muitas vezes não se
deseja que a história seja conhecida, para tanto se destroem as fontes. O ditador
Joseph Stalin mandou apagar, de todos os documentos históricos, as referências
a participação de Trotsky na Revolução Russa de 1917. Como eram inimigos
políticos, logo que tomou o poder, Stalin usou seus privilégios de ditador para
reescrever a história da Revolução, eliminando um fato verdadeiro, que foi a
participação de Trotsky.
Por tudo isso, devemos
sempre abordar as fontes históricas com muito critério e senso crítico, e não
podemos ser ingênuos diante de documentos.
Fonte
do texto: PETTA, Nicolina Luiza de. OJEDA, Baes Aparicio
Eduardo. Coleção Base: história: uma abordagem integrada. São Paulo. 1 ed.
1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário